Já está em cartaz há uma semana, mas, com algum atraso, vamos lá: é
formidável a história do inglês Percy Harrison Fawcett, ex-oficial do
Exército Imperial Britânico e cartógrafo que, em 1906, a mando da Royal
Geographic Society (e do Império Britânico) foi o primeiro a se
embrenhar na região pavorosamente inóspita e então completamente virgem
que hoje compõe a fronteira entre Brasil e Bolívia. Era milagre que
alguém saísse vivo desse tipo de expedição. Mas, depois de uns dois
anos, a selva cuspiu Fawcett de volta, vivinho, com ótimos mapas em
mãos, que evitaram uma guerra territorial entre os dois países – e
picado pelo mosquito da obsessão. Obsessão pela própria selva amazônica e
por vencer, na base da fibra física e moral, suas dificuldades
inimagináveis. E obsessão pela ideia que ele começou a formar, apoiado
em artefatos que achou e que juntou aos relatos dos primeiros
colonizadores espanhóis do continente americano sobre uma El Dorado –
uma majestosa cidade feita de ouro. Fawcett entendeu, claro, que El
Dorado era lenda. Mas encasquetou que a lenda tinha uma origem, e que
haveria, em algum lugar da Amazônia, as ruínas de uma cidade deixada por
uma civilização extinta. E, como bom vitoriano, ele queimava com o
desejo de ser o primeiro a encontrá-la. Essa é a história que o filme do
diretor James Gray adapta do livro-reportagem de mesmo título do
jornalista americano David Grann. Adapta e, infelizmente, empalidece.
É lógico que um filme de duas horas não pode conter todo tipo de minúcia
que cabe num livro de mais de 300 páginas. É lógico também que, nesse
processo de resumir, o filme vai ter de tomar algumas liberdades. Tudo
isso faz parte, e é um prejuízo bem pequeno diante do benefício muito
maior de apresentar à plateia um personagem tão singular. Só não creio
que o resumo e as liberdades seguiram o melhor caminho possível.
Primeiro porque o filme é lento, carente de emoção, e às vezes se
arrasta mesmo – e no entanto deixa de fora um monte de detalhes
interessantes que caberiam nele com facilidade se o roteiro fosse mais
dinâmico. Segundo, porque o diretor e roteirista Gray escolhe tornar o
Fawcett interpretado por Charlie Hunnam um homem quase agradável, quase
simpático. Fawcett era mesmo um colosso de personalidade, de
inteligência e de intento. Mas podia ser intragável, e era um osso
duríssimo de roer – e existe algum outro osso capaz de sobreviver a
inúmeras expedições de anos de duração à selva amazônica?
Percy Fawcett tinha uma resistência física extraordinária, e achava
todos uns fracotes sem espinha em comparação com ele (exceção feita ao
amigo e companheiro de expedição Henry Costin, numa bela interpretação
de Robert Pattinson). Nunca guardava sua opinião para si: esfregava-a na
cara dos presumidos fracotes a toda oportunidade. Lá estava o sujeito
chacoalhando de malária, e tendo ainda de ouvir que a febre de 41 graus
era mera frescura: toca marchar dez horas seguidas sem pausa para
refeição. Fawcett não tinha dó de ninguém e submetia a todos – mulher,
filhos, expedicionários, amigos – às exigências terríveis dos seus
planos e obsessões. Tinha um ego monumental, e espumava de rancor ao
menor arranhão a esse ego. Era competitivo ao ponto da irracionalidade, e
de cara conseguiu fazer um inimigo do brasileiro Marechal Rondon, que
também iniciara suas incursões à imensidão inexplorada (Rondon devolveu a
antipatia na mesma moeda). E, a dada altura, perdeu o senso de
perspectiva: quanto mais fantasiava com Z, a cidade perdida, mais
confundia suas fantasias com o possível.
Meu ponto: não é preciso gostar de Fawcett para se fascinar com ele.
Muito pelo contrário. Fawcett é fascinante por ter sido como foi, cheio
de ardor e de injúria, de visão e de contradição, de virtudes que
viravam defeitos ruinosos. É um tipo de ser humano que o mundo hoje tão
esquadrinhado, na palma da mão do Google Earth, quase não é mais capaz
de produzir. É um aventureiro prodigioso de uma era tomada pelo desejo
de aventura. Lendo o livro de David Grann, me apaixonei pela teimosia e
pela irascibilidade de Fawcett, pelas brigas que ele comprou, pela gente
graúda com que ele foi bater cabeça sem nem pensar duas vezes. Admirei a
maneira relutante – relutante mas muito admirável em um inglês do seu
tempo – com que ele adquiriu algum respeito para com as tribos que
encontrou. Mas Fawcett nunca perdeu seu senso de superioridade sobre
elas, até porque nunca perdeu seu senso de superioridade sobre ninguém.
Esse Fawcett até afável do filme, cheio de consciência ecológica e de
consideração étnica – esse Fawcett que ouve a mulher, bate umas trilhas,
passa um pouco de fome e aí mata um porco do mato e pronto, está salvo e
bem-humorado de novo? Esse não é Fawcett. É uma representação
politicamente correta do personagem real, agudamente preocupada com os
ditames do que hoje se considera ser de bom tom. Fawcett não precisa ser
desculpado por ser como foi, e sobretudo não precisa ser “melhorado”.
Só precisa ser conhecido. Gostar dele não é fácil. Ms apaixonar-se por
ele é quase inevitável.
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